28.2.07

(cravaram-se em mim os destroços da tua angústia)

foi assim, por uma tarde abandonada, que surgiram vagas imagens
por alguns gestos assopradas
pelo meu olhar transformadas em outras de percepção clara

são assim as casas que se movimentam no profundo dos jardins
bem como quem nelas parou e me contempla.
e sob o ruído dos ventos, como um perfume,
vozes distantes regressam como o reflexo desse instante que me desampara

(e a tristeza é esse espelho velho de outras horas)

luz sussurrante caída sobre os cubos de granito destas ruas
por onde dessa vida desapareci.

25.2.07





um longo adeus

(c) pedro morais

21.2.07


(aguarela sobre papel, detalhe, 1990)

as estórias são assim, imprevisíveis.
assaltam de rompante os nossos dias, devorando os nossos passos,
arrombando o nosso olhar.
delas não se foge impunemente,
bem como não se participa nos seus movimentos
sem se ser embrulhado por riscos e perigos
e delas não se sai sem que novos sentimentos,
por vezes já tão velhos e tão usados,
vinquem corpo fora novas rugas,
escavadas a partir do fundo do coração,
do negro das nossas palavras,
da massa outrora informe da nossa alma.

outrora é sempre antes dessas estórias.
outrora é sempre para trás.

16.2.07



(lápis sobre papel, 12 setembro 2001)

15.2.07

é fácil imaginar-te
um anjo de asas erectas e olhar de pássaro entristecido,
olhar de ave tomado pela morte rapina,
aí, quedo na colina serena e crua do tempo
que já não existe.

é fácil saber que me observas,
qual fuste branco de cal viva,
preso pela minha memória,
à espera que esta se imobilize, envelhecida,
e te permita, enfim, repousar
sobre o esquecimento merecido.

não é fácil, porém, esquecer
(perdoar)
o movimento rasante dos teus olhos sobre os meus,
sobre o abismo em mim mais temido

e a sede do teu corpo apagando, linha a linha,
o contorno dos meus dias.

14.2.07


(pintura a óleo sobre tela, detalhe)
(c) pedro tudela

terras rubras, húmidas sombras inquietas
o vento que toma por amante a copa mansa do pinhal
e o inverno que se perfuma de primavera


no quintal entorpecido
desabrocham camélias, magnólias
enquanto que, na serra, se iluminam ramos de acácias
indiferentes à cacimba que humedece o meu rosto distraído
para lá das portadas de madeira, dos muros de granito
que o abraçam, dos limoeiros
para lá dos vidros soprados que compõem caixilhos apodrecidos
das chamas que a pedra de lioz enquadra
de cera pálida, suave e cálida
alumiando numa preguiça infinda o fim de uma tarde de domingo

inquieto o inverno que se perfuma de primavera
desafiando os rebentos atrasados da ameixieira moribunda
irrequietas as vozes das crianças compondo herbários
ao som de palmas, de segredos e gargalhadas
inquieto o rapaz esguio que semeia palavras nos desenhos
traçados finos, aguarelas, diários gráficos
cordas metálicas e amplificadas na caixa aberta
do seu coração

e os livros com que fizeste essa outra caixa onde te resguardas
e os livros onde respiro fundo o seio da minha infância
onde se afogaram fantasmas e mágoas

onde sonharam terras rubras,
mágicas
os lugares, os amores
a nossa vida

13.2.07


(c) josé paulo andrade, 2007

revisão em 20 de fevereiro (a pedido do JPT):

este é um dos locais mais espantosos da cidade do Porto e, apesar da excelente fotografia, seria impossível mostrá-lo de uma só vista, tal como ele é.
trata-se de uma praça logo abaixo da Sé, onde os Jesuítas construíram uma igreja, conhecida como a dos Grilos, de orientação no terreno propositadamente desigual å da que representava o poder do papa.
tem uma fachada de granito imensa, perpendicular ao plano de pedra da encosta, uma demonstração de poder ampliada pela pequena escala das demais construções que compõem os restantes lados da praça.
a esta acede-se pela escadaria incrustada na rocha, saindo-se, em direcção
à Ribeira, pela Rua de Sant'Ana, a do arco do romance de Almeida Garret, se bem me lembro.
tenho, por esta praça, um particular afecto, já que foi num projecto que desenvolvi para aqui, durante o meu primeiro ano do curso de Arquitectura nas Belas-Artes, que aprendi a olhar.
nessa época, este local estava muito degradado e pejado de crianças descalças e famintas que pareciam saídas de um filme do Manoel Oliveira, sempre fascinadas com os estudantes de cadernos de papel cavalinho e as suas caixas de lápis caran d'ache.
as casas, húmidas e esconsas, albergavam famílias imensas, as ruas próximas prostitutas e os seus homens, mas também pescadores, balconistas, pedreiros...
era um lugar tranquilo, onde nunca fui assaltada ou ameaçada (a droga ainda não tomara conta destes espaços) onde passei muitas horas a desenhar
e a aprender a olhar.

ficaste nessa praça por entre pedras altivas
e rebocos de cor acutilante
e a tua voz perfurou a temperatura seca
da tarde que nos rodeava.
ao teu lado, o tempo é ácido,
é cristalino
e as sombras pululam sob cada palavra,
expostas,
fazendo dessas conversas
um beco frondoso de fantasmagóricos desejos,
pelo tempo esquecidos,
pela idade abandonados.

surprendeu-me o vigor dos teus lábios
ao ditarem cada palavra:
a crueza sobranceira do teu olhar
em nada transparecia a dor que seguramente tomaste
ao sabor dos dias e dos medos
por toda a tua vida.

mas perdeste, porém,
a capacidade de te abandonares do alto dessa barricada.

e eu,
de corpo entranhado nos granitos e azulejos das fachadas,
a pele absorta pela luz mergulhada no rio,
capturada por todos os movimentos da calçada,
soube distintamente o que hoje de ti me afasta:

só sei reconhecer-me sempre que me perco
por uma qualquer paixão.

12.2.07

dia 12 de fevereiro 2007




5.2.07

conheço agora alguns dos percursos com que poderia
arrombar esse olhar onde não se avista um céu
ou uma estrela
mas apenas o fim de mundo onde os corpos de que não queres possuir imagens
se misturam por entre as pedras, essas sim imortais,
e constroem arquitecturas devastadas através de gestos sem lugar,
sem tempo,
proscritos pelo teu olhar.

os medos indecifráveis que te corroem
de longe vieram e deles nada sei
para além do abandono que o teu corpo já não sabe como suportar.


essa dor maior é o crime que melhor cometes
e por ele desejaria descer sobre a tua vida.
não como anjo pacificador, imagem que me agonia,
mas como cratera onde te afogasses
para que, num fim de tarde, sob a calmia da noite crescente,
o teu corpo pudesse enfim boiar na beleza com que me soubeste contaminar.




(1990, tinta-da-china sobre papel de aguarela)

singular engano,
perco todos os caminhos em que te posso encontrar.
e, como um contorcionista, embrenho a mente em pensamentos desfazados do próximo poente,
enquanto arqueio passos em jeitos de te conquistar.
brevemente descubro que te quero mas não amo
e, por entre desvarios, já só, duvido se te amo e não quero.

eis-me de novo na velha rota circular:
balbuciadas as inconsequências e os medos
abandonas-me sempre quando quase rompi os braços no rumo do teu olhar.
é sempre no prumo desse gesto que me desdenhas

e que me perco.

4.2.07



(estudo, lápis sobre papel)

triste o meu pais, feira de vaidades
onde os representantes do povo precisam de se escudar num referendo para decidir, delegando responsabilidade

onde ditadores concorrem com poetas
ao sabor da quantidade de dinheiro gasta em publicidade poluta e demagógica

país onde a responsabilidade e os deveres cabem só a alguns
e onde tantos se arvoram da sabedoria e do direito de julgar o outro
triste o meu país onde tantos outros acham que as mulheres encararão o aborto como método contraceptivo
a usar em quantidade ilimitada
(como se as mulheres fossem abortar como quem bebe um copo de água)
triste o meu país
onde tal decisão continua nas mãos de quem vota no big brother
nos ídolos ou nos grandes portugueses

triste, triste...

1.2.07

dia 11
PORQUE SIM

Um soneto de Natália Correia a João Morgado (CDS-PP)
«O acto sexual é para ter filhos» - disse o deputado do CDS-PP em anterior debate sobre legalização do aborto.
A resposta, EM JEITO DE POEMA, que fez rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia.
Aqui fica:

"Já que o coito - diz Morgado -
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou - parca ração! -
Uma vez. E se a função
Faz o órgão - diz o ditado -
Consumada essa excepção,
Ficou capado o Morgado."


(VM, via mail)



(lápis sobre papel)

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