24.2.08

à noite caminho a teu lado na Junqueira em julho
crescem sombras nos muros nas plantas inquietas
mordidas pelos ventos que atravessaram o deserto
agitadas pela ânsia dos pássaros dos gafanhotos
pelo perfume de hibiscus tamareiras buganvílias
crescem sombras nos meus degredos nocturnos
reconstroem o cavername que ciclicamente me asfixia.

é quando lanço mão do teu olhar que de repente nos assemelhamos
a uma rocha à deriva uma baía ali mesmo antes do Tejo
ali perturbada pelo cheiro a maresia
os sentidos eriçados quando saímos do arco de luz dos candeeiros
e embatemos contra todas as sombras e a tua boca roça na minha
a tua boca beija a minha.

22.2.08



(caneta e lápis de cera sobre papel, 1984)

egon schiele

19.2.08


© zp

intertexto

há muito que deixaram de gostar de ti por razões obscuras

e se a vida continua a piorar dir-te-ão o contrário
fazem jogging cardio-fitness depilação
têm a barba aparentemente displicentemente aparada
o palavreado seco a voz tecnocrata bem colocada sem pigarro
são deus e o homem fazem projectos emitem opiniões
decisões sobre os mais convenientes pareceres técnicos
pensam na casa na rapariga top model no tablóide
no carro desportivo na nação tão humanos tão banais vestem fato-de-treino
fato-armani-rosa-e-teixeira blusão-de-camurça sapato-de-vela
workaholics e puritanos não fumam viverão para sempre
jantam com banqueiros magnatas especialistas e socialites
compram acções e se a vida continua a piorar
enquanto não sabes o que fazer com o salário mínimo com o seguro
com o crédito para o fogão para a televisão para os livros escolares
enfurecer-se-ão por não estares humildemente agradecido
pelas estradas leis planos de ordenamento investimentos gestão transparente
pela avaliação do vizinho do colega do chefe da mulher-a-dias do cão
pela internet e os estádios a culpa será dos ministros dos autarcas dos jornalistas
do povo infecto improdutivo dos corruptos será também tua
que não saberás ser boy subserviente diligente bem-falante
e disputas os leitos de cheia para a tua mísera vida
olha os móveis os bibelots as colchas almofadadas
os frigoríficos os televisores que a lama emporcalhou
para os quais é necessário disponibilizar share mediático
encontrar palavras de piedade e comiseração

há muito que deixaram de gostar de ti por razões obscuras
sabem que ninguém se lembra das cheias nos anos oitenta
nos anos sessenta em 2008 já nem se lembram das de 2001
evidenciarão a diminuição do número de mortos um progresso
que no tempo da outra senhora era tudo tão mais fácil
não havia o culto da miséria nos talkshow da televisão
ainda assim cansar-se-ão depressa esquecerão
que escorrem 35 litros de água por metro quadrado
na direcção da ribeira do prior velho, da ribeira de alcântara, do rio trancão

há muito que deixaram de gostar de ti por razões obscuras.

17.2.08



(caneta rotring sobre papel)

camélia
(flores no quintal quando está frio e húmido)

(ser)
livre
(o exercício diário)

som
(da voz, das palavras, dos afagos, dos beijos, da música, do vento, das vagas no mar, dos passos na calçada, da caruma a estalar)

solar
(o estado de espírito)

negro
(o outro estado)

filhos
(os meus, os meus)

pele
(onde reverbera o desejo)

lugar
(a cidade, a casa, o quintal, o penedo, a sombra da árvore, o areal, os braços dos meus amores)

livro
(o outro lugar. o sonho, o poema, a descoberta, o desejo, o reencontro, a biblioteca, a livraria, o cheiro da casa onde já não vivo)

canela
(o perfume, a comida, o oriente, as caravelas, um dia de festa)

tela
(a do cinema, a da pintura, a do tambor)

luz
(a que me permite olhar os teus olhos, a que traz a noite quando se vai)



para o jpt e o jpn.

13.2.08


cinco minutos na varanda do lugar comum

o café sobre a mesa o caderno vermelho que acompanha a agenda

e um contraluz matinal sobre a mata do jardim botânico o rio a serra

onde sopra o vento que cedo soprara na porta de casa.

a vista tem o rumor dos pólens das poeiras a surdez do tráfego matinal

veio no silvo da locomotiva por entre colinas nos braços dos afluentes

no abraço da criança ensonada nos belos rostos dos adolescentes

chegando ao areal na sombra da alcáçova perdida.

11.2.08

hoje, para P.M.

© pedro morais

9.2.08

passam os dias passam devagar secos como o pólen que o vento primaveril
veio depositar nos passeios nos terraços no alcatrão
passam os automóveis de janelas abertas
e raparigas de vestidos curtos sem mangas

mulheres-a-dias penduram cobertores húmidos nos estendais
arejam a sala o quarto a arrecadação
passam as mãos nos cabelos limpam o suor desfasado no tempo
passam as mãos passam o ventre no comboio apinhado ajeitam a carteira
passam a ferro travesseiros colchas e lençóis
ajeitam as crianças que a patroa não tem tempo de levar à escola
passam horas minutos palavras apagadas pela poeira que assombra o inverno
o vazio alastra logo acima do diafragma comprimindo os pulmões
as costelas o coração

passam os dias passam secos como o saibro da alameda do jardim botânico
secos como a sombra da fraga onde crescem o tomilho e a hortelã
a que cheiram as raparigas quando cheiram como botões de magnólia
têm a pele suave das camélias e os rapazes demoram o olhar nas suas bocas
ao entardecer sonham com um violino com violetas ouvem acórdeão e sanfonas

ao entardecer lagartas licranços centopeias ratos escaravelhos lesmas
térmitas e lacraus proliferam na terra temperada por uma falsa estação.





© cj

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