28.11.06

às tantas, às tantas, vai ser sempre assim.
à espera do remate com todos os gestos inacabados ou imperfeitos,
sem saber ao certo se a perfeição não será apenas o teu corpo encharcado
neste cais a tresandar gaivotas sujas em espaços curtos de mar.
às tantas, só noutro tempo direi que te amo,
mas não como às estrelas do céu que não te pertencem.

(as estrelas guardo-as para outrém
à laia de um equilíbrio incomprensível
apenas mesurável na espera de uma noite sem luar)

o mar está no engate de todos os gestos vagarosos que acrescentam aos dias pedaços de mim,
marcas de sangue arrastando riscos nunca maiores dos que abandono nos passos
para te encontrar.
fugaz certeza esta que acrescento ao teu retrato
já que é tão grande o desejo, a paz de te tocar.

estar aqui desdobrando letras para perpetuar gestos ou um esgar,
ensalivando as palavras com um dia que fiz para ti
é um tempo impertubável:
o cais sob as docas graníticas que a ponte de ferro fundida sobrevoa
ao longo do ruído surdo dos automóveis
o resfolgar do aparo sobre o papel
enquanto o corpo balança ao vento suave que não vem do mar.



a tua morte foi-se desdobrando, inevitável,
como o voo de um olhar
sobre o dorso de um corpo que se afasta.
a tua morte causou um rombo
nos mais serenos dos meus dias,
expondo no meu rosto o desespero,
harpia ardente da tua agonia.

olhares de bruma em manhã de abril,
olhares de águas mil,
brechas claras nesta tarde ensurdecendo:
falar de cravos, de maio
ou desse outro sul,
que importa
se assim de ti me lembro?

sibilante desce a tua morte sobre estas horas
e as palavras que te dirijo
são só gritos desabridos
pelas imagens murmuradas
desse outro tempo.

25.11.06



(esposende, 2006)

24.11.06

eram tardes de verão perdidas por entre as nossas mãos intocadas,
o areal batido pelo brilho áspero do sol,
efémero registo de palavras apenas sopradas
fendilhando um qualquer destino que nos consumia.

eram horas como grãos de areia, clara e fina,
medidas rigorosas dos circulares percursos da alma,
tomadas pelo vento sobre a pele cálida,
qual escopro de um tempo inexistente,
inscrição de rotas paralelas de desejos como marés-vivas.

eram dias caiados por intensas esperas,
luminosas como só o meu olhar quando te seguia
e o mar,

ah o mar

era o imenso cavername onde se abrigavam todos os sonhos,
o único semelhante da beleza não visível que,
sem o sabermos, já nos tomara,
deixando-nos reféns e amantes de uma ética severa
que nos colocou em permanente dicotomia
com os burocráticos, virulentos vazios que conjuram estes outros dias.

eis-me aqui.
não escrevo sobre a saudade ou o desalento,
nem tão pouco procuro a nostalgia.

colho, por entre as tuas mãos
agora plantadas no terreiro ermo da morte,
as imagens esquecidas,
florações intumescentes advindas de uma dor inesperada,
por estas palavras fossilizadas no negativo fotográfico
da minha vida.

palavras bebidas pelos poros de um olhar ávido de poesia.

23.11.06


(novembro 2006)

a tarde à espreita.

22.11.06


(fotografia a partir de uma escultura de virgínio moutinho)

a sombra do pássaro

20.11.06


(novembro 2006)

18.11.06

o homem ficou só.
trazia as mãos despidas de cinzas. vazias.
com as sombras do silêncio iníquo que tomara conta da sua vida
compôs palavras ao anoitecer.

a mulher, tão longe, sentiu-as
cravadas na alma, ofegantes
flores apavoradas, belas
porém fugazes. circunstanciais
como o inverno longo que os aguarda.


a mulher não se levantou para as colher
de um sopro cálido.

antes fechou os olhos
cerrou o corpo, o olhar.
o homem ficou só, de mãos vazias.

dos seus lábios desassombrados
palavras continuam a desenhar ficções
metáforas
poemas
cantos

águas profundas
onde boiam belas plantas apodrecidas
insalubres
viciadas
para sempre perdidas.

estou aqui a escrever poemas para ti que não existes em mim.
poemas falsamente angulosos como o meu corpo que não o é
e talvez assim o teu rosto me vislumbre
nesta volta e retorno a um desejo tão inesperado quão obsessivo:
como gostava de percorrer o teu corpo (esse sim anguloso, quase oblíquo)
com os meus dedos magros,
como quem desenha uma rota em busca de um instantâneo,
cativar-te na ponta desse olhar táctil.
ou então, deambular sobre os teus membros de boca vagarosamente entreaberta,
de voz silenciosa e respiração quase suspensa
à procura do sinal exacto de onde enfim um beijo pudesse roubar.

mas nada do que eu sei me é permitido.
para ti que não existes em mim,
todas as palavras sôfregas de ti que aqui abandono
são fábulas.
como selvas de cidades distantes arrastadas por plantas traiçoeiras que, displicentemente,
nos armadilham na corrente destes dias de outono
em que eu não posso encontrar-te.

assim, das horas velhas e dos olhares cansados, vai sobrar esse amor sem forma,
pleno de imagens,
e eu, por estes lugares sentada numa escadaria de pedra branca, sempre só,
vou desventrando esse céu negro e plano em torno de estrelas cadentes,
quem sabe se vindas do teu olhar.
para ti vestir-me-ei de organzas de seda fugaz e,
como numa velha estória de amor, por ti esperarei.
por ti ou por um qualquer outro que arraste um olhar irresistível
que arrebatarei erguendo os olhos muito devagar (como num filme)
para que sorvas de um só trago todo o desejo que soube guardar.

aqui, nestas escadarias brancas, vivo o desepero de não saber esperar.

a solidão regressou
varrendo os laços ténuemente estabelecidos com os dias dos outros,
através de verdades incontornáveis
que procurara tomar com outros olhos
e para as quais, sei agora,
precisaria ser outra vida, outro corpo,

outro olhar.

horas lisas, superfícies de longas esperas,
âmago obscuro destas terras
ou tão somente o tempo sobre o meu corpo,
de onde serras derramam cheiros a vento,

a flor de laranjeira,

enquanto me quedo, só,
por noites intranquilas.

10.11.06





(kew garden, março 2006)

algures dentro do meu subconsciente deviam jazer registos destas flores
que iam emergindo nos meus desenhos
sem que eu as referenciasse a nenhum espaço em particular

mais tarde, num dia feliz,
reconheci-as, dentro da estufa de um jardim botânico

só pude fotografá-las e sentir o seu perfume a orvalho

feliz por as poder observar de perto,
sem o filtro da minha memória interior,
aquela que compõe e referencia os impulsos do que há em mim.

9.11.06







(estação do parque, 2006)

ao anoitecer...

8.11.06


(c) pedro morais

6.11.06

o futuro tornou-se curto como uma lufada de pássaros
revivida em cada ano como a única estação.

os lugares foram devastados pelas imagens
e a tua boca

os teus beijos
são o único passo para o burgo almejado,
devorado pela mais tranquila serenidade,
onde se desdobram os risos de todos os filhos,

as sombras deste voo arriscado
da nossa alma contra o tempo,

do nosso desejo
contra a morte.


(coimbra, couraça de lisboa, 2006)

4.11.06

mansa decrepitude que embaraça as ruas do burgo,
nesta tarde de outono cujo tom embaciado de primeira friagem, de primeiro arrepio,
trazem à boca da escrita a melancolia das palavras de cesário.

dias crepusculares, turvos, clamando pela matinal lucidez da luz de inverno,
finda a época da claridade, dos dias longos e descalços
neste outono que se deixou arrastar por cheias e tempestades
navegando aos solavancos na trama dos afectos

uma destas manhãs virá
uma baforada gelada e límpida

varrendo a suavidade dos meios-tons
relembrando os contrastes
os braços nus das magnólias intumescidas
prenunciando rebentos através das camélias apressadas
no jeito da esperança reencontrada
embora nunca e sempre perdida

como esta rapariguinha aninhada no meu regaço,
que cantarola e tagarela com os seus botões
como os dois pedaços de chocolate que embrulhou e escondeu na minha mão
e como o rapaz que desenha
a beleza imperceptível de olhar

lá fora escurece
é tempo de fazer fogueiras.

1.11.06

perder-te-ia para sempre na minha memória
como um sopro de vento cativo numa gruta inesperada, coberta de pinturas,
de desenhos sobre a rota dos astros.
lá guardo tudo o que o meu olhar é capaz de transportar,
velhos pedaços de paixão que se encastram no caos dos meus olhos
como gestos de ternura enorme,
como uma velha cidadela onde só eu não sei como te encontrar.

mas não sei se alguém se alguém deambula
pelos sulcos que o meu desejo cavou,
nem sei se alguém deixou mais que esse sopro de vento
que faz voar as poeiras depositadas pelo tempo sobre
os meus amores.

assim, cobrem os meus olhos
como véus perfumados
como se foram secreta paixão.

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