28.11.06

a tua morte foi-se desdobrando, inevitável,
como o voo de um olhar
sobre o dorso de um corpo que se afasta.
a tua morte causou um rombo
nos mais serenos dos meus dias,
expondo no meu rosto o desespero,
harpia ardente da tua agonia.

olhares de bruma em manhã de abril,
olhares de águas mil,
brechas claras nesta tarde ensurdecendo:
falar de cravos, de maio
ou desse outro sul,
que importa
se assim de ti me lembro?

sibilante desce a tua morte sobre estas horas
e as palavras que te dirijo
são só gritos desabridos
pelas imagens murmuradas
desse outro tempo.

3 comentários:

blue disse...

escrito em 1992, na sequência da morte do meu Pai.

Anónimo disse...

Ainda Torga, sempre, num dos textos que mais gosto.

S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1956 - Um dia terrível, de apocalipse. Minha Mãe morreu num fim de primavera feminina, e tudo se passou com poesia e flores. Meu Pai finou-se ao entardecer dum Inverno serôdio, e foi sepultado debaixo de chuva, neve e trovões, como se a natureza em desordem quisesse exprimir o desespero de perder a ordem que ele representava. De casa ao cemitério, as lágrimas e as bátegas confundiam-se nos mesmos charcos. O sino, a dobrar na torre, tinha um som rouco, oco, de asfixia. E a terra com que lhe arrasaram a cova caía sobre o caixão aos baques, maciça, numa agressividade de argamassa arremessada. No fim, trazíamos todos – o padre que o absolveu, o povo que o acompanhou, e eu que o chorava ainda – restos daquela lama pegajosa e tumulara agarrada aos pés. O chão que a sua férrea vontade de cavador tornara leve a cada semente, ao vê-lo caído, vingava-se dele e de nós, seus mortais testamenteiros. Sepultava-o, ostensivamente para toda a eternidade, sem esperança de qualquer humana ressurreição, e mostrava cinicamente a força das garras com que nos estrangularia quando chegasse também a nossa vez.

Miguel Torga, Diário VIII

blue disse...

belíssimo. e forte. obrigada.

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