31.8.08



© filipe paes,
lápis sobre papel, agosto 2008

Charles Baudelaire (1821-1867)

29.8.08

de repente somes pela frincha do soalho
segues o percurso das centopeias e dos aranhiços as feromonas do formigueiro
deitas-te nesse espaço intermédio
nessa espécie de bacia geográfica do medo do sonho
entre o tecto do mundo e a treva
de repente
dizes há muito que não sabes da inocência de um segredo trocado
eu respondo há muito que cobri os antebraços as costas das mãos
a linha da nuca há muito que dela não sopras a sombra do cabelo
os poros eriçados
há muito que sofro de aspereza
tu sorris porque não recorro ao médico da praça
ao centro de saúde à ginecologista ao estomatologista à psiquiatra
se calhar ao dermatologista ao homeopata à bruxa estás tão pálida dizes
sofres de aspereza de olheiras escuras de celulite
quem sabe a corporación te atribui um crédito por cinco anos
um cardiologista um osteopata uma nutricionista um médico do trabalho
dizes há muito que não me beijas e a tua boca é
digo interrompo
quem sabe eu suma por uma frincha do soalho
e contorne as centopeias os aranhiços as térmitas o caruncho
e seja um pouco como a cera de abelhas
a pele se amacie os dedos toquem a erva que cresce no lameiro
o sol atravesse as poeiras no final da tarde
quem sabe tu ao meu lado
e eu consiga por fim adormecer quem sabe
porque não me beijas
quem sabe.

26.8.08

todas as manhãs nos bancos da locomotiva que agosto esvazia
todas as manhãs abandonadas à frequência atonal
ao silvo que estremece os canaviais

levantam-se bandos de rolas cintilam álamos nos barrancos que o rio alaga
todas as manhãs do mundo nessa meia-hora que circunscreve a treva
as poeiras o burgo o asfalto.

21.8.08




© cj

17.8.08

salvo palavras no écran de luz parda faço os backups do desamparo
no terreiro de pó no final do dia
na linha de ferro estrangulada de um dito inconsciente colectivo
circled by the circus sands
o Dylan em Berlim a película do Wenders
água azul numa tela de Hockney

somos brancos diz a mulher indiferente à borrasca
não seremos o ramo genético que sobreviveu na costa oriental
e subiu as margens do Eufrates
não seremos de Babel nem seremos Persas nem sequer Hindus
somos todos brancos repete quem ainda a escutará
que ninguém o faça aflijo-me grito que lhe sequem a língua e os seios
que as minhas mãos ardam em pragas que não haja abrigo
não sou desse jardim e nenhum réptil me perderá

estou sentada numa cadeira de verga coberta de areia
tenho os pés descalços
visto-me de giz o teu olhar é um quadro negro
um solavanco dizes-me é a ossatura da dor inquieta
também para ela não tenho abrigo murmuro
ainda assim mordes os meus lábios engoles as minhas palavras
como quem procura uma dose letal
sem anteparo não somos desse outro jardim
nenhum anjo nos salvará.

15.8.08

hoje, reconheço-me em palavras que encontro aqui.

12.8.08



© caneta sobre papel, 2008

10.8.08

intertexto


Lembrem-me as portas e as janelas abertas
os perfumes de que as raparigas guardam os nomes
a linha branca do amanhecer
atravessando os quartos
acordando o sexo os pulsos a voz
o suor nas ruas ninguém tem medo
dos fascistas nunca mais
ninguém tem medo da CIA do Carlucci
do cardeal Cerejeira do cónego Melo do general Spínola
no Rossio no Carmo ninguém tem medo

Quem tem casas vocábulos odes troncos
ramos braços searas está cego pela
trova quente agitando sobreiros e azinheiras
para os quartos as salas as persianas semicerradas
os sociais-fascistas o camarada Vasco
a praça do Giraldo no Toural
para o louva-a-deus no dorso do muro o silêncio
ou um grilo negro nas mãos
não vê quem lá dentro tem medo
quem tem?



obrigada, Luís.

6.8.08


© pedro morais

4.8.08

lembrem-me os quartos as salas as persianas semicerradas
o perfume dos aloendros dos cravos-da-índia da salva cor de sangue
a linha crepuscular das sombras

arrastadas pelo ar que atravessa os compartimentos
perfuram-me o esterno os brônquios o esófago a voz

o calor lá fora cá dentro quem tem medo
dos comunistas dos fascistas da cólera quem tem medo
da CIA do KGB dos cubanos dos maoístas
do cardeal Cerejeira do cónego Melo do general Spínola do camarada Vasco
na praça do Giraldo no Toural no Rossio no Carmo quem tem medo

quem tem
casas vocábulos odes troncos ramos braços searas
que me lembrem os quartos as salas as persianas semicerradas
a brisa quente agitando sobreiros e azinheiras

as trovas do Zeca do Chico do Aleixo
um louva-a-deus no dorso do muro o silêncio
ou um grilo negro nas mãos
quem tem medo hoje quem tem?



Morreu Alexander Soljenitsine.

hoje, as palavras do Luís dizem tudo.

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