29.8.06


(guimarães, 15 de junho de 2006)

esse ponto de fuga para o granito crú de que se fez o burgo
onde pondera a passada e repousa o olhar
como se galgam os pedregulhos da colinas que o circundam

essa sede de pedra de quem só avista eucaliptos
onde houvera carvalhas, castanheiros, cerejeiras,
morangos silvestres

hesitando sobre qual laje partir para uma gargalhada desbragada
sobre que montra libertar um segredo
em que varanda abraçar uma criança

esse ponto de fuga que não é saudade
essa escrita que apaga o esquecimento.

28.8.06


(c) pedro morais


(praia da claridade, 2006)

um barco naufragou na praia da claridade,

junto ao molhe e ali ficou, enferrujado, enterrado,

o mistério preferido de todos os gaiatos desse tempo de longas férias,

alcançadas por carros carregados com lençóis, pratos e talheres e mudas de roupa,

empregadas a tempo inteiro de farda preta e cozinheira,

o casaco comprido branco da mãe mais bela

para os passeios na marginal em noite de nortada,

as sweatshirts de malha branca do pai,

as mãos nos bolsos das calças de linho e os óculos escuros,

o carrinho de bebé inglês onde dormia o rapaz chorão,

a casa havanesa a cheirar a livros, perfumada de letras e segredos,

outros mistérios,

os guarda-sóis e as cadeiras de lona às riscas azuis,

os dias intermináveis,

as risotas da avó e das suas vaidosas amigas,

as horas mais felizes com os primos distantes.

o barco foi finalmente removido

e esgotadas todas as férias na praia da claridade.

subimos para norte, depois de uma breve passagem pelo sul,

dos braços das searas alentejanas e do azul mediterrânico,

às enseadas graníticas perfumadas de algas.

da praia da claridade só resta essa hipótese

de investigar nas ruas de hoje

as pistas físicas desse outro tempo,

compondo novas referências nesse percurso,

a sopa de peixe preparada pelos amigos,

saboreada na companhia das gargalhadas dos filhos

com quem trocámos estórias, lugares

algumas memórias (in)comuns.

25.8.06


(agosto 2006)

dor de linho, dor de voz

incolor

dolor de amor
flor de amor

olhar por um fio
respiração insustentável
azul, água, luz
azul, noite, luz


aquática
dolor, dolor

dolor por amor
flor de amor

flor de farinha
flor de pão
flor de sal
flor de flor

cardo, lótus
louro

voz de flor
flor de amor

dolor, dolor
pão e manteiga flor de pálido amor
perfumado

odor de amor
flor de amor

dolor.
amor.



(c) pedro morais

24.8.06

partirás

quando o verão passar,
sussurrando um ar quente sobre as vozes encerradas
no casco de registos alojado lá no fundo
desse olhar encoberto.

na cadeira de convés sobre a gravilha do quintal,
o corpo estirado na velha lona vestido de linho branco,
é compasso de um pensamento no abandono à luz esparsa e irrequieta
que as folhas do castanheiro derramam sobre o rosto,
as mãos.

e a impressão dessa dor de ontem, já morta,
sob a linha de diafragma de um beijo soprado
para o vulto que se ausenta da sua memória

é devolvida ao silêncio da tarde.

hoje, olhaste nos olhos dela.

18.8.06


(c) pedro morais

(ilha deserta, verão de 2006)

ficar só, só.
das pontas dos pés ao rosto nú esticando os braços para o olhar infinito
rolando livre no banco de areia
até à água mais clara

até à transparência mais fugaz de um pensamento breve,

as risadas e a espuma branca surripiadas pelo vento,
o azul, o azul sem contorno,
o sal nos beijos e na pele
o camarão e a sardinha e os pimentos em azeite perfumados,
o cheiro a cardos fugindo das dunas inebriadas
por lírios brancos e inesperados na vegetação arisca:

a imensa pausa,
o silêncio intenso e raro.

como essa absoluta incerteza
da rota das ondas sobre a areia desenhada por vagas de conchas intactas
colhidas pelas mãos curiosas de uma criança feliz

e logo realinhadas pela vaga seguinte,
pelo plano de areia do vulto do rapaz

em contraluz.

como essa absoluta certeza de uma imperturbável
e íntegra felicidade.

11.8.06


(agosto 2001)


hoje, a luz matinal

antes do vento
antes dos pássaros
antes do calor

à distância de uma fracção de segundo
à balbúrdia dos aeroportos
ou ao restolhar das acácias africanas.

durante o tempo de um segredo
os beijos perdidos, as mãos suadas,
o olhar fugaz.

pouso os pés sobre o soalho que range
e já o dia se arrepia sob as ameaças perspicazes

(that long black cloud is coming down)

e sinto frio.

tu dormes,
todos dormem

intranquilos.

9.8.06


spanish harlem 1966
(c) brucedavidson

não há brisa que acalme a temperatura excessiva deste dia de agosto
nem ilusão que tranquilize
nem lamento tardio.

e o desejo, esse,
é tanto ou mais intenso
quanto mais do irreal se distancia.

8.8.06

à tardinha, quando regresso a casa no comboio,
prometo a mim própria escrever sobre o desaparecimento voraz
dos laranjais que desenhavam as margens do mondego, em coimbra.
ontem, ao avistar a progressão da via aberta a partir da ponte da portela,

voltei a fazê-lo e, hoje,
aqui estou:

para quem chegava a coimbra pela estrada da beira,
percurso sinuoso curvado pelas inflexões do rio ceira
sob os aglomerados de casas encavalitadas nas encostas vertiginosas,

ou para quem percorrera, por entre plátanos,

as curvas e contracurvas da romântica estrada de penacova,

chegar à portela não era somente
avistar o rio ceira a mergulhar no Mondego
em açude de pedra irregular também hoje desaparecido

era desaguar o olhar nos laranjais junto à ponte,
sentir o seu perfume cálido e fresco,

desejar correr pelos areais de pés descalços
e beber da água transparente na fonte de um mosteiro…


vieram as plantações selvagens de eucaliptos,
as casas encavalitaram-se ainda mais.

a velha ponte e as ruas que ligava
quase sempre entupidas de carros,
e o comboio, na ponte ao lado, diligente e altivo
quando os horários se cumpriam.


e, lá em baixo, ainda mais distantes,

os areais intactos onde corriam garotos descalços e laboravam lavadeiras,
ciosas da brancura dos enxovais às suas mãos confiados

cores vivas sobre um rio derramado para banhar as margens da cidade...


a cidade, diligente, construiu o açude do choupal.


deixou de haver lavadeiras e garotos junto ao parque mas,
na portela,
era possível, nos breves segundos vividos dentro do carro ou do comboio,
invejar a vida do areal,
cheirar o perfume das laranjeiras
e imaginar as centenas de anos decorridos sobre aquele território...

hoje, as margens do mondego têm parques urbanos
onde penam algumas laranjeiras desamparadas,

e a cidade faz-se de condomínos pseudo-luxosos para as elites várias,

ordenados em torno de vias rápidas para automóveis
assentes sobre taludes,

assentes sobre leitos de cheia.

e o perfume a flor de laranjeira
povoa apenas as palavras de quem dele não quer perder a memória.


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