29.3.07


(ecoline, lápis e tinta da china sobre papel vegetal, anos 80)

hoje não me apeteceu escrever
mas guardei as palavras escritas aqui


em silêncio.

25.3.07



(aguarela sobre papel, 1989)
(estudo, tinta-da-china sobre papel, 1989)

23.3.07


© virgínio moutinho

o porto nocturno de que tanto gosto


21.3.07


praça dos grilos, porto (tinta-da-china sobre papel, anos 80)

ergo-me escura, severa, granítica sobre a pequena praça que me acolhe
rasgada que foi a encosta a que me contraponho em silêncio
sobre as calçadas esburacadas esvoaçam gotas de água fria, pés descalços
em correria, vozes escorridas dos estendais enfeitam ruas escuras
onde o sol desagua de reflexo em reflexo, dos caixilhos de guilhotina
para as taipas cor de oiro, reverberando nas juntas dos panos de azulejo estremecido

adormecendo nas empenas vermelho-ôcre de chapa ondulada
revelando o céu entrecortado pelos beirais, linhas profundas de sombra
onde se abrigam pardais, sonhos e andorinhas.

na velha casa incrustada no burgo
cresce a figura do rapaz coada contra o tecto de maceira escuro
uma luminosidade serena assinala a figura da rapariga contra a sacada
veste camisa de rendas cerzidas por mãos de filigrana, saia de grosso linho
e ele alinha o seu rosto pelo perfume da barrela
pelas cinzas que clarearam o olhar que o assombra
pela braçada de jarros brancos caídos no chão encerado
o tempo parado, por momentos, colhido como uma flor bravia
perscrutando penumbras e silêncios
debruçados sobre o vértice do inverno
onde florescem camélias cor de púrpura

e os silêncios deslocam-se em massa
caiem desfeitos por um sorriso


(aguarela e tinta-da-china sobre papel, 1988)

o desenho esquecido
ficou desfocado.

20.3.07

é este o acto seguramente mais poderoso de todos os movimentos da minha boca,
mais belo do que qualquer beijo inevitável: amo-te.

depositei assim esse gesto assustado
no reino onde o meu olhar nunca desesperará de te procurar
e onde perduram todos os meus parcos amores.
e aí desenho esse movimento vagaroso
com que a minha boca dura e encarnada
assombra o teu corpo alvoroçado,
enquanto a tua memória do seu som não souber como se libertar.

clamo assim por todos os anjos e fadas
por todos os entes entranhados nos meus sustos e pavores
para esconjurarem a tua vontade de olvidar,
para te guardarem no mais profundo dos meus sonhos,
lá de onde ninguém te poderá roubar.

caio, rolo e tropeço e do desejo pouco sei,
nestes dias encarcerado nas poucas marcas que reservo do teu rosto,
entrelaçado que o meu corpo está no teu olhar.


(caneta sobre papel pautado, 1985)
(© pedro morais, tinta da china, tinta permanente e ecoline sobre papel, 1985)

a duas mãos


a escrita que mais me emociona, hoje é aqui.

18.3.07



(acrílico sobre papel, 1990)
(estudo, esferográfica sobre papel, 1990)


© lumière morte
o lugar onde tudo se dispersa


(aguarela sobre papel, anos 80)
coisas de rapariga

13.3.07


© pedro morais, museu grão vasco

entreabro o caixilho e sinto o céu de lápis
arco perfumado sobre capitéis de folha de palma
exultante, lavado de mágoas


e respiro
pólen, poeiras, poalha
esquecida por momentos reflexos
ocultas que estariam as sombras pela incidência solar
deste meio-dia.

(ouvem-se as carpas no tanque
fresca é a água que desliza pelas meias canas de pedra do regadio
os milhafres planam, escaravelhos indagam

cálido e perfumado

o colo do alvo pátio onde por segundos me resguardo)

mas já a hora solar se apressa, já os punhos se contraem
e o turbilhão de ideias e vozes
célere, se levanta.

10.3.07



(acrílico sobre papel, 1998)

7.3.07


este é o jardim de planos temporais desencontrados onde me recolho
plural, insólito, negro
arvorando de silêncio cada passo, cada olhar, cada pensamento
astro impenitente de pálpebras cortadas
onde se imprimem, cruéis, todos os sinais
devotados às minhas incongruências

do lado de cá desse outro lado da alma
compõem-se inábeis palavras resistentes
contrapontos
quais camera obscura em busca da percepção de um olhar

como a luz intercepta uma intenção
e cativa sombras

vozes perdidas

6.3.07


(aguarela sobre papel, 1997)

5.3.07


© pedro morais

refugiei-me na tua voz que,
por entre as outras vozes (surdas)
e o chocalhar das luzes da sala,
pode devolver-me a certeza de que me levarias para tão longe
que nunca saberia como regressar.

dias antes,
caminhara pelo curso do meu vulto perseguido pelos teus passos,
cadência de olhares furtivos de outras horas:
adivinhei então o tombo vertiginoso dessas águas,
cíclico como todas as marés,
embriagado de brumas apetecidas,
de onde só às vezes adivinho como regressar.

já há muito que não tomavas os meus olhos
com os teus olhos,
assim firmes sobre os teus lábios
dizendo que vieras para me levar

(sei, porém, que trazes em mim a morte)

e eu


quero saber sempre como regressar.



© pedro morais

4.3.07

romperam-se os gestos que o meu corpo reservava ao teu olhar:
despedaçaram-se contra os ventos mornos e sujos
que os dias da tua ausência trouxeram.


a tua ausência transformou-se assim numa ruína
onde perdi todos os rastos da tua pele,

toda a sombra do teu cheiro,
toda a mágoa de já não saber como procurar o teu olhar.
a dor, essa sábia e cruel,
vai assim perder-se por esse deserto onde tombou a tua imagem.
desta nem sei se reservo os teus olhos
que recordo armados em pose de pássaro real.

já prometera não o fazer desde o último olhar que me recusaste,
ficando defronte deste rombo que causaste no meu corpo
à espera de saber como não chorar.
a promiscuidade que a tua ausência trouxe encarregou-se dessa lição tenebrosa,
destruidora dos sonhos e também dos abandonos.
e por esses dias quentes, sob o sol de um outono cruel na sua beleza
pelo oposto das vozes fedorentas que rondaram os meus lugares,
deambulei de desespero,
para tropeçar numa névoa que me embrulhou de saudade para finalmente descobrir
como não chorar.

continuam assim intactas essas arquitecturas
onde busco imagens para não deixar de me encontrar,
embora aquelas que te pertenceram estejam já cobertas de poeiras
pelas chuvas petrificadas que,
com o tempo, quem sabe se com o verão talvez,
rachem e se despedacem,
dando lugar a esses retratos, inscrições que em nada se conseguem disfarçar.

ou então talvez sobrem unicamente esses sopros de vento,
talvez não haja nada para recordar.

1.3.07


(detalhe, tinta-da-china sobre papel)
março de 1998, para Z.

é apenas uma rapariga de cabelo cor de fria lava
no plano rosto desponta a boca
rosa pálida luz cava sanguínea desenhada
como flor de lioz descarnada que num só olhar assombra
e contamina.
é apenas quase uma menina pela tarde
descendo degraus de traça escusa
na sombra do jacarandá, flores de anil
diafragmas de luz
e sonho sobre as pedras
arfantes, o colo desnudo

capturando o volátil pressentimento do rapaz
preso numa esquina ausente, ao sol
desamparado, fenece

e só à pele da noite e só na pele de um beijo
o desejo.


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