28.11.07



para lá do hemisfério das palavras solitárias

cresce o rapaz por entre os muros da escola
cresce longe de casa, sem o cheiro do pão cozido,
sem trepadeiras de rosas vermelhas
sem hortênsias azuladas por linha de horizonte
logo após a cerca, logo antes dos valados verdes de musgo
antes dos pastos de aveia, do pousio, da tremocilha

em casa ficou joaquina rosa de olhar e regaço mansos
cobertos por avental imaculado
ficou o grande joaquim embrulhado em lençóis de linho grosso
as mãos magras dela entrelaçadas nos dedos desajeitados dele
ficaram as crianças que o rapaz já não pode ser
ajudam a amassar o pão a cobrir de açúcar o doce branco
a acender o forno muito antes da madrugada
uma cama deixada ao frio
uma cadeira vazia na mesa da cozinha

são olhos como poças de água corações apertados pequeninos
à mesa a carne é para os homens de batina
a gula é um pecado mortal, a fome assim também

e intensas são as pautas de música
ah intensas as harmonias que se aprendem a ler
e que ressoam na abóbada da capela como
manchas
solares serpentinas belas

mais do que flores de papel em dia de arraial
mais do que as pétalas que compõem passadeiras para a procissão
mais do que o oiro sobre a nuca das raparigas
intensas e como saciam
cantos gregorianos, oratórias

prenúncio de madrigais.

25.11.07





às seis e quarenta e cinco não está frio no quintal
e eu não encontro os galhos da poda do jasmim
para acender o fogão
às seis e quarenta e cinco é ainda muito cedo
digo para a casa adormecida
falo sózinha às seis e quarenta e cinco
é demasiado cedo confirma o relógio da igreja
reluz a estrela d’alva sobre o vulto negro do pinhal

sentada nas escadas do passadiço organizo o dia que se inicia
dia azul azul azul e não sei dos galhos para acender o fogão
às seis e quarenta e cinco ainda não há pão
não há brumas nem aragem nem geada
não se ouve a passarada
eu tropeço no silêncio
enumero tarefas contadas nos dedos das mãos

a casa quente
o açúcar em ponto de pérola e as gemas para o pudim do abade
as maçãs reineta cobertas de massa de areia
o chocolate negro negro
para a mousse e o fondant
o vinho quente com especiarias e gomos de laranja
o doce de leite
a porcelana de flor de pessegueiro
e eu sem galhos para acender o fogão

pela tarde vestir-me-ei de negro serei minhota
enfiarei contas de oiro de viana
pendentes de oiro puro, arrecadas
flores na casa quente para honrar os que virão

é cedo, muito cedo
para os ausentes, reservarei sempre
um lugar no coração.

23.11.07



(tinta-da-china e tinta permanente sobre papel, 1986)

20.11.07

soçobrar num murmúrio
sem ar
de olhos abertos e palavra lúcida
sem amor nem agravo
sem um olhar

e saber dos fogo-fátuos a desoras
das pedras roladas na praia
roladas como beijos e afagos


o sal marinho a água a luz o ar



© virgínio moutinho

Criados Mudos

uma exposição de Virgínio Moutinho
no Centro Comercial Bombarda, Rua Miguel Bombarda, Porto

18.11.07

intertexto:

contra mim sem ti por mim longe de ti
escrevo e reescrevo alinhavo
veios salinas rotas mapas
e, contra mim longe de ti
escrevo e reescrevo ateio
fogos crepúsculos erratas

por mim sem ti longe de mim.


(caneta sobre papel, 2007)

12.11.07





6.11.07


Dorothea Lange, 1940

escritas há que eu gostaria de ler todos os dias

entre dois espaços há sempre um outro
entre duas casas que foram uma
o vulto do segredo assenta sob a abóbada
de cal e areia que se avista pela fresta de uma porta


vejo a tina de ferro oxidado onde um homem adormece
a tulha de pedra, braçadas de linho, ramos de tomilho, barbas de milho, violetas
duas ramagens de pele ruborizada e um beijo
uma mão cheia de gargalhadas na peneira da farinha

entre cada espaço entre cada passada
uma pedra branca, o solho de castanho lavado

e depois apenas terra
a argila dos pinhais.

3.11.07

em dia de cemitérios
não chove sobre o anjo quedo na praça da bastilha
não chove no quarto que não é quarto
nem sequer na casa que não é casa
não chove no corpo que é vazio
não é possível que chova no nada.

não chove sobre as árvores do parque
nada humedece o saibro vermelho das alamedas
nada alimenta os líquenes que se desfazem em pó
não chove, hoje não chove
queimam-me a pele astros desamparados
que outra coisa não chove no nada.

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