8.8.06

à tardinha, quando regresso a casa no comboio,
prometo a mim própria escrever sobre o desaparecimento voraz
dos laranjais que desenhavam as margens do mondego, em coimbra.
ontem, ao avistar a progressão da via aberta a partir da ponte da portela,

voltei a fazê-lo e, hoje,
aqui estou:

para quem chegava a coimbra pela estrada da beira,
percurso sinuoso curvado pelas inflexões do rio ceira
sob os aglomerados de casas encavalitadas nas encostas vertiginosas,

ou para quem percorrera, por entre plátanos,

as curvas e contracurvas da romântica estrada de penacova,

chegar à portela não era somente
avistar o rio ceira a mergulhar no Mondego
em açude de pedra irregular também hoje desaparecido

era desaguar o olhar nos laranjais junto à ponte,
sentir o seu perfume cálido e fresco,

desejar correr pelos areais de pés descalços
e beber da água transparente na fonte de um mosteiro…


vieram as plantações selvagens de eucaliptos,
as casas encavalitaram-se ainda mais.

a velha ponte e as ruas que ligava
quase sempre entupidas de carros,
e o comboio, na ponte ao lado, diligente e altivo
quando os horários se cumpriam.


e, lá em baixo, ainda mais distantes,

os areais intactos onde corriam garotos descalços e laboravam lavadeiras,
ciosas da brancura dos enxovais às suas mãos confiados

cores vivas sobre um rio derramado para banhar as margens da cidade...


a cidade, diligente, construiu o açude do choupal.


deixou de haver lavadeiras e garotos junto ao parque mas,
na portela,
era possível, nos breves segundos vividos dentro do carro ou do comboio,
invejar a vida do areal,
cheirar o perfume das laranjeiras
e imaginar as centenas de anos decorridos sobre aquele território...

hoje, as margens do mondego têm parques urbanos
onde penam algumas laranjeiras desamparadas,

e a cidade faz-se de condomínos pseudo-luxosos para as elites várias,

ordenados em torno de vias rápidas para automóveis
assentes sobre taludes,

assentes sobre leitos de cheia.

e o perfume a flor de laranjeira
povoa apenas as palavras de quem dele não quer perder a memória.


1 comentário:

rosi disse...

belas palavras que desenham frescos odores da memória.

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