rua fora
os sentidos cercados pelo descompasso da valsa que o rapaz corrompe
uma caixa aberta um trompete um cavaquinho
o revérbero inesperado
a banda sonora que me transporta
à banda da procissão
à banda do baile
à banda da associação
por passadeira de flores
tão solene mordomo da festa
vagas de transeuntes no insólito solar
quão distante estou de Palermo dos Balcãs do Minho
desenho mulheres e rapazes adormecidos
é tão mais fácil fixar quem não nos toma de assalto
a mulher que desenho parece um pássaro
um desses corvos-marinhos que a temperança trouxe aos baixios do rio
avisto-a por entre canaviais
ensopo os sapatos ao caminhar na sua direcção
sem ensaio nem suporte nem muleta volante
tem as sobrancelhas as pálpebras o cabelo o casaco de malha negros
na pele condensa-se uma nuvem
sobe o nível da água até aos maxilares desmancha-se-lhe o casaco o sexo
cheira a grafite e aos meus olhos acorrem imagens como manchas de óleo
bosques de papiro o cordame de uma vela
o meandro de um ímpeto a ausência de uma sina
por vezes seria mais fácil dizer palavras numa outra língua como
walls gone over the sea
imaginar quatro paredes abertas ao vendaval
desaparecer entre elas e surgir do outro lado
entre o que ouço e o que escrevo o que vejo e o que sei
não tomo notas à medida que caminho
atravesso o parque de estacionamento
a escavação arqueológica
o lajedo do refeitório do colégio
os estratos compostos por escombros
um escudo vinte e cinco tostões garrafas de plástico muros de pedra
uma superfície intacta de reboco feito à colher
o programa do procedimento o caderno de encargos
tapumes palas sobre os olhos as árvores derrubadas na praceta
esqueletos nas sombras do Jardim quão distantes
e próximos de mim que desenho mulheres nos bancos do comboio
assinalo os cílios as rídulas os botões o trejeito da boca
o vocabulário visível que me indica
a professora a mulher-a-dias a enfermeira a balconista a auxiliar de educação
antes na plataforma que a manhã cobrira de gelo tendo a serra por encosto
logo depois rua fora caminhando contra vagas de cotão e pólen
no descompasso que lhes reserva cada dia
imagino-as sobre passadeiras de flores.
1.4.09
Posted by blue at 12:58 da tarde
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8 comentários:
Gosto muito.
Bem escrito e bem bonito, este poema!
Bjs
não diria que faz "perder o fôlego"
estou com alguma dificuldade em encontrar palavras para descrever o ritmo respiratório que este poema me provocou
é certo que acelerou, mas não se tornou porém acelerado
(deu para perceberes?)
"desenho mulheres e rapazes adormecidos" aqui leio como que um resumo da tua expressão, é tão tão a tua voz :) é impressionante!
e assim me vou sem cometer o pecado de explicar este meu espanto-prazer repetindo essa 'linha'...desenho mulheres e rapazes adormecidos
A tua escrita é envolvente, mexe com todos os sentidos. Adorei, que mais posso dizer?
beijo
marisa
o que mais posso dizer diante de um poema que respira assim?
...pois... depois disto tudo que se disse...
sem palavras realmente...
um beijo
No deserto, este poema calaria a sede. As suas palavras derramam gotas de luz.
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