6.8.09




continuo a andar
o verão apresenta-se numa disfuncionalidade embaraçosa
eu também
atravesso passeios entro no táxi digo para o largo D. Dinis por favor
ajusto o auscultador nos dias em que me atribuo uma banda sonora
dedico os meus olhos à projecção interior dos espaços que percorro
de comboio de táxi a pé posso dessa forma recriá-los quando escrevo
estranha forma esta de recuperar uma e outra memória
espaços vazios lugares que se apagam outros que reaparecem nítidos
a rua dos Caldeireiros
a rua das Flores
a rua da Bainharia
a rua do Almada
a esquadra onde separo identidades
dispersas por objectos perdidos
em busca da minha guardara-a numa carteira
estranha forma de me perder para uma nova vida
saio para a praça observo as fachadas
precisarei de um ano para ser capaz de as desenhar
o que faria pelo jardim de S. Lázaro
passeio pelo largo das Fontainhas
faço de conta que sou um qualquer pássaro uma folha de papel
voo sobre as encostas do rio devo imaginá-las antes do burgo
antes da ponte D. Luís
um exercício escolar
aterro no varão dessa outra desenhada pelo Gustavo Eiffel
agarro-me com força não olho para o rio
avista-se por entre as tábuas do passadiço
se me cai o caderno lá se vão a arquitectura os desenhos os poemas

os números de telefone se caio
não serei como uma folha de papel não terei asas
apenas o peso das gárgulas
volto as costas ao comboio-foguete
estremece a estrutura de ferro a que me ancoro
regresso ao exercício
perceber o corpo das encostas afastar construções

muros de granito empenas de chapa
a folhagem outonal que cobre as
ilhas
vergas de porta caiem com estrondo no rio
rapidamente aponto as curvas e as sombras
antes que volte tudo ao seu lugar
caminho de regresso à margem acompanha-me um inter-regional
uma brisa de enxofre
rapazes de farda acenam lançam beatas pelas janelas
dirigem-se à gare de S. Bento eu já não sei por onde de ali saí
creio que foi pela curva de um anfiteatro a céu aberto

a Grécia no Porto desenhos a giz
linhas de uma viagem maior narrada pelo Arquitecto
mapas do Sítio

o genius loci que daí em diante se procurará por todos os lugares de uma vida
a livraria na rua de Ceuta
o recoveiro na Trindade
o cinema da Batalha
o café Guarani
a avenida da ponte
a Galilé
o largo dos Grilos
a rua de Sant’Ana
as fachadas de caixilhos à face assentes sobre taipas coloridas
elevadas da humidade das calçadas por muros de granito
entre prostitutas e chulos bandos de crianças descalças jogam à bola
há roupa pendurada nas janelas
velhas sentadas nos degraus das portas
mulheres com bebés de colo
pescadores na Ribeira observam-me de caderno na mão
esforço-me por desenhar
cobiçam-me os lápis caran d’ache
a caixa lembra as vinhetas dos chocolates suíços
prossigo sozinha.

2 comentários:

Carlos Ramos disse...

Admirável... felicito-te, sempre.

Anónimo disse...

Fantástico, fantástico, fantástico! O Porto também gosta de certeza.
Já tinha saudades das tuas palavras. Regressei.
Um beijo
marisa

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