13.10.06

pela tarde,
a garganta entupira-se de palavras desdobradas como fiadas de linho intermináveis,
interpretando os registos generosamente acumulados na velha mala de viagem
e tecendo memórias impalpáveis

numa só frase descritas a lápis sobre a peça de linho intocada,
numa só frase reveladas.

perene imagem essa, a da jovem mulher debruçada no plano de luz suave
enquanto a mão desenha palavras sobre o tecido cru,
contido gesto de reflexa tristeza
por mais uma morte,

por mais um dia.

é ainda a rapariga serena de caligrafia irrepreensível
que,
cumprindo os deveres da família, pátria e religião,
frequentara a escola lá do frondoso vale de serafão,
onde se perde o passo alegre colhendo as sombras das carvalhas,
dos castanheiros
no caminho de casa,
o cheiro a pedra, a musgo, a terra orvalhada,
a folhas secas tombadas no chão,
quando cobria a chuva o entardecer
e tombavam os cabelos de azeviche, enrolados, sobre a nuca altiva
por gola de alvo linho aconchegada.

(que não se engane quem nela deposite o olhar)


é nos olhos cor de avelã, luminosos e compassivos,
que se apreende a postura dessa alma
clara
como só as águas das fontes
orgulhosa como apenas os fetos desbragando o penedio
fugidia como a lebre que se esconde nas raízes do carvalhal

na casa de pedra, onde as janelas desconhecem caixilhos,
a vida percorre o alpendre de lajedo sombreado por telha de barro
e ri-se a roseira encarniçada
que devora a sombra dos degraus na qual se recolhem
os mais belos amores

desabrocham raízes, vermelhas flores
numa outra escadaria

de uma outra casa,
também ela abrigo de novas horas, de tantas outras lágrimas
de tantos outros quantos amores.

mas hoje, tarde dentro, a minha voz secara.
e o vazio a descoberto era só esse,
quando ninguém sente dor alguma
excepto a sua.

6 comentários:

blue disse...

work in progress...

rosi disse...

belo, vou acompanhando.
gosto especialmente desta imagem
"a garganta entupira-se de palavras desdobradas como fiadas de linho intermináveis"
bjs

Laura Ferreira disse...

e eu das palavras com letra pequena,deixando adivinhar a cada um de nós onde é que podem ser "grandes". e são grandes, certas palavras que escreves. gosto imenso de te ler.

blue disse...

obrigada, rosi e laura, por não serem apenas uma presença virtual. gosto muito de vos ter por aqui.

Anónimo disse...

Muito belo, Cláudia. Gosto de ler os teus poemas alto, porque soam como belíssimas baladas. Obrigada por estes momentos.
Beijos

blue disse...

obrigada, marisa. este ainda não está terminado, sinto que não tem o ritmo certo, espero republicá-lo em breve, de forma mais coerente.
este é o breve intervalo de período infernal de trabalho, em que não há tempo para estas actividades e a escrita fica relegada para as páginas do caderno amarrotado no fundo da carteira, no regresso a casa, solitário e tardio.
mais uma semana a este ritmo e, depois, tudo voltará ao seu normal ritmo. beijo.

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